sexta-feira, 25 de agosto de 2017

CONTO #001 - O SEBO

Estava entediado. Saí de casa sem rumo e comecei a andar pelo bairro. Assim. Sem destino. Queria respirar outros ares, caminhar por outros lugares. Estava cansado do bairro onde morava. Resolvi entrar no metrô. Já no trem lembrei de um lugar que daria distração e me faria esquecer o tédio. Desci do trem e subi as escadas. Na saída o sol ofuscou meus olhos que logo se acostumaram e me deixaram ler o letreiro do outro lado da rua. Era ali mesmo. Fazia vinte anos que não entrava naquele lugar. Atravessei a rua junto com a multidão. Na esquina uma moça encostada no poste e vestida com uma saia mínima de couro e salto alto sorriu para mim. Dava para perceber a maquiagem reforçada em plena luz do dia. Parei para observar, mas recusei comprar seus trinta minutos. Não acabaria com a minha apatia.  E entrei no sebo. Era o maior e mais conhecido da cidade. Olhei para a esquerda, próximo à porta, estava sentado em sua mesa o proprietário. Estava concentrado em alguns papéis. Fiquei surpreso. Era a mesma imagem de vinte anos atrás. Pensei que àquela altura já não estivesse mais vivo. Mas ele estava lá, sentado, com uma camisa de manga comprida, branca e com listras escuras, óculos repousados no peito e pendurados no pescoço e paletó pendurado no encosto da cadeira. Prossegui. Poucas pessoas nos corredores. Meu nariz começou a coçar. A rinite avisou que estava em área proibida, não era bom ficar por muito tempo. Difícil. Quando entrava ali ficava horas a fio procurando algo que geralmente não sabia o que era. Pequenas placas amarelas feitas de papel cartão escritas com pincel atômico vermelho indicavam as seções. Achei a sessão de Literatura Estrangeira. Comecei do nada a procurar por um livro de Dostoievski que tivesse um preço bom. Estava desempregado e não tinha muito dinheiro. Ainda bem. Se tivesse, gastaria tudo ali. Gostava de comprar livros, mesmo que fosse só para ficar na estante. Mesmo que nunca pensasse em ler um determinado livro, comprava por um motivo qualquer. Encontrei a letra D e comecei a procurar pelo autor. Uma voz feminina e jovem quebrou o silêncio. Parei para ouvir:
-Eu quero o livro David Copperfield.
-Vou ajudar você a encontrar. – prontificou-se o funcionário.
-Mas eu quero em inglês.
-Inglês britânico ou americano? – perguntou o rapaz.
-Tanto faz. –respondeu a moça.
-Vem aqui! – chamou o funcionário. – Charles Dickens fica ali, atrás daquela estante. – e apontou.
Ouvi os passos no assoalho de madeira. Não resisti e dei uma espiada entre os livros. A moça era bem jovem. Tinha dezesseis ou dezessete anos, no máximo. Vestia uma saia curta que deixava as pernas brancas à mostra. E voltaram a conversar.
- Nesta estante estão todos os livros em inglês. Pelo jeito não temos David Copperfield.
-Mas eu visitei o endereço do sebo na internet e ele estava catalogado. –tentou insistir a moça.
-Anotou o número indicado no catálogo? – perguntou o funcionário.
-Não.
-Sabe me dizer se é um pocket book? – fez outra pergunta.
-Também não sei.
Entre os livros pude perceber a moça ficar enrubescida. Os olhos azuis e arregalados brilhavam. Ela pressionava um caderno universitário contra os peitos.
-Podemos ir até a seção de pocket books para ver se encontramos o livro. O que acha?
Espirrei e não ouvi a resposta da moça.
Continuei tirar os livros da estante e a folheá-los despretensiosamente.
Meus olhos começaram a ficar irritados. Lacrimejavam e ficavam vermelhos. A cada minuto espirrava mais. A garganta secava e fazia com que eu tossisse sem parar. O nariz coçava muito. Definitivamente a poeira e os ácaros eram meus maiores inimigos. E, infelizmente, escolhiam como esconderijo o meu mais recorrente objeto de desejo. Levantei para procurar um bebedouro. Não havia nenhum. Fui até a entrada perguntar se vendiam água mineral. Não vendiam. Os sintomas diminuíam quanto mais tinha contato com o ar de fora. Quando, finalmente, tudo havia voltado ao normal, resolvi voltar para entre os livros. Parei na seção dos livros “mais procurados”. Assim indicava a placa na estante: Muitos Harry Potter, Stephenie Meyer, Nicholas Sparks, Rick Riordan, alguns Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Peguei um Sagarana para reler a história do Augusto Matraga, meu conto predileto. Não consegui iniciar. Dois funcionários subiram pela escada e começaram a discutir:
-O que faço agora?
-Se vira!
-Sumiram com o Érico Veríssimo.
-Alguém roubou.
-Eu estava de olho nele desde ontem quando disse que vinha buscar.
-Desce e fala para o Moisés.
-O “seu” Moisés vai me matar quando eu falar que roubaram o Érico. O que eu faço?
-O homem tá lá com ele e quer o livro. Desce e explica pros dois.
-Me ajuda a procurar aqui nos “mais vendidos”!
Pediram licença. Me afastei um pouco. Começaram a procurar.
A presença deles me incomodavam. Resolvi procurar outra seção.
Entrei no corredor só tinha livros em outras línguas, livros técnicos, de anatomia, filosofia, química, matemática. Virei para a direita e ouvi aquela voz novamente.
-Para! Não pode fazer isso comigo!
-O que você vai fazer? Vai chamar o patrão? Não ligo. Já tenho outro emprego em vista.
-Vou chamar a polícia. Me solta!
Olhei para o canto mais escuro e o funcionário estava sobre a moça que queria o Charles Dickens em inglês. Ele tentava beijá-la e ela, mesmo presa pelos braços e pelo peso do corpo do rapaz desviava a cabeça. Voei em cima dele e puxei-o pela gola da camisa.
-O que você está pensando? –perguntei sem pensar.
-Desculpa! Não é o que o senhor está...
-E você? Está bem? –perguntei para a moça.
-Sim. – ela respondeu. Muito obrigada. – agradeceu e saiu.
-Pensa no que você fez? Se ela chama a polícia, você vai parar atrás das grades. Ela deve ser menor e neste caso sua situação fica ainda mais complicada. Só não te levo eu para a delegacia e não entrego você para o “seu” Moisés porque também não sou nenhum santo e não pretendo prejudicar ninguém. Mas vê se da próxima vez segura seus instintos e faz o seu trabalho, apenas. – o sermão foi dado para o jovem que não tinha mais de vinte e três anos.
-Está bem. Obrigado. E desculpa!  -estranhamente ficou grato e desculpou-se.
Naquele momento eu quis ir embora. Já havia praticado a boa ação do dia. Ainda estava desmotivado. Parei perto da seção de poesias. Pensei em ficar, mas o nariz começou a coçar mais uma vez. Acontecia também sempre que ficava nervoso. Não havia encontrado um bom livro para me distrair. Já estava ficando tarde e quando chegasse em casa teria muitos episódios para lembrar.
Desci a escada e saí. “Seu” Moisés estava no mesmo lugar de sempre, do mesmo jeito. Perto dele, o funcionário tentava explicar ao cliente o sumiço de Érico Veríssimo.

Parei para aguardar a passagem dos carros e atravessar a rua. Encostada no poste, a moça sorriu para mim mais uma vez. Era a moça que estava à procura do David Copperfield em inglês no sebo. Pensei que fosse estudante da língua inglesa. O jeito de menina me fez acreditar também que era menor. Minha avó materna sempre dizia que as aparências enganavam. Fiquei surpreso. O tédio começou a desaparecer. Resolvi conversar com a moça e estava disposto a comprar os seus trinta minutos.

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